MA VIE OU BELLE VIE NO MAVI:
UMA TASCA À PORTUGUESA

Por
Vitália Rodrigues

Dezembro de 2001

Fora da Cova da Iria, uma tasca que vai passando do impessoal ao personalizante: uma forma de ser-se português, uma tasca bem portuguesa, com certeza. Com toda a certeza come-se no MAVI um bom frango assado e bebe-se um bom vinho português de garrafão. Para ser da pipa só falta a dita porque o resto é como se fosse -dizem os seus simpáticos proprietários que levantaram uma velha taberna do chão. Onde antes se serviam cachorros, "poutines" e quejandos se come hoje barato e à fartazana. A testemunhá-lo a grande afluência de africanos que em todas as línguas da colonização e mesmo nas várias recriações dessas línguas, nos vários crioulos que adoptaram a casa como sua sala de jantar. E com a boca perto do coração a lembrar o que manjavam na sua terra, vêm em bandos e com apetite de veludo, trincar ali mesmo o galinácio ou, então, levá-lo para comerem em casa. Os Africanos começaram por ser os primeiros clientes da casa, vocacionada, inicialmente, para a deslocação ao domicílio - as "livrezons", como dizem João e Maria João - depois, gradualmente, porque o dinheiro não chega para tudo, sobretudo quando se vende barato, compraram toalhas para as mesas, verdes e encarnadas, louça de barro tipicamente portuguesa e lanternas para as paredes que fazem lembrar as tascas do Bairro Alto. Começaram a aparecer os primeiros portugueses e estes foram fazendo algumas sugestões: - Porque não um caldo verde? - Vinho português de garrafão que ao menos esse tem uva!.
Nem sempre há o que a gente quer. Não faz mal. Traga a sua carne que nós assamos poderia bem ser o título colocado à entrada. E às vezes quando a caça o permite até javali lá se pode encontrar. Já lá comemos também cabrito assado (ali mesmo nas nossas barbas). Dá-se sempre um jeito para safar a malta que quer comer coisas que não vêm na ementa. Ementa? Não é preciso. Está tudo à vista. - As pessoas não vêm cá para ler, vêm para comer - diz o João, enquanto a Maria, rediz, a talhe de foice: - Sim, que isto aqui não é nenhuma biblioteca. Mas é ali que vemos, vezes sem conta, os professores de Português e os estudantes da nossa magna língua, deliciarem-se com bons nacos de especulação literária. Há mesmo quem diga que boa parte do celebérrimo programa de Mineur se conjecturou em tão inspirador cenário. Na parede frontal, especado na parede um grande cartaz e um não menor pensamento de José Saramago. - Devias era pôr ali o retrato do Eusébio ou da Amália, sugerem alguns conformados e conformistas do tempo da sagrada trilogia Fado-Futebol-Fátima. E se já havia "effes" de sobra, alguém mais actualizado e erudito responde com um vocábulo também começado com F (e que por recato não reproduzimos) seguido de: - Ainda se fosse o Figo e a Dulce Pontes ou mesmo a nossa Sãozinha. E logo um indígena que está por perto se afoita na proposta: Põe mas é aí aquela oferta de mil dólares que um maduro qualquer oferece a quem denunciar quem lhe chamou paneleiro. - Já vai em três mil pá, esclarece um outro. - Por três mil dólares até podem dizer que fui eu, diz um terceiro, conhecido pelo Pé Ligeiro (metafórico claro) e a Mão na Oportunidade. Ou tão simplesmente, o Brasileiro. Cremos que se estarão a referir àquela preciosidade literária escrita em brutoguê,s que o Jornal do Emigrante publicou nas suas páginas "chauffé au rouge".
E a tertúlia prolonga-se que a noite ainda é uma criança. E criança se deita já que a tasca fecha por volta das dez da noite. Que o Michael, de oito anos, tem de ir para a cama. P'ra cama vão muitos os que dali saem depois de extensos jogos de saudade & sedução.
Tertúlias outras se realizaram ali. O ex-Cônsul Geral de Portugal, em Montreal, o Dr Eduardo Fernandes de Oliveira (sempre ali relembrado com carinho e saudade: Esse sim, era homem para falar connosco!), acompanhado do Dr. Luís Aguilar e da Dra. Maria Luisa Fernandes, ali comeram todos um caldo verde e um bacalhau. O melhor bacalhau que já comi, confessa a Dra. Apparecida de Almeida. Às Sextas-feiras não faltava ao chamamento do Fiel Amigo. Outros tempos, sim, que ela agora já aí não vai. Que o português é muito lento a servir, minina (não perde uma para falar mal de Portugal e dos portugueses). - Ela anda sempre num foguete- diz o João. - Quando chega aqui já quer tudo pronto, mastigado e tudo, e isso não pode ser, ataca a foice de talhe, desta vez, a Maria João. No MAVI o ritmo é a três velocidades (devagar, muito devagar, devagarinho), pois os grelhados levam o seu tempo... São algarvios (não é metafórico, é verdade mesmo!). - Sheila, (a sedutora angolana que trabalha no Mavi e que põe os moços de olhos em bico) estamos às escuras - diz o Dr. Luís Aguilar, quando ali vai acompanhado dos seus estudantes de Língua Portuguesa e Culturas Lusófonas, regularmente, às terças e quartas, para mais uma tertúlia. E a Sheila dirige-se para o interruptor olhando estupefacta para a lâmpada acesa. - Não é isso, lembra a Maria João. - O que eles querem é um jarro de vinho. E virando-se para os que acabam de chegar: Querem luz branca ou tintada?. Entre outras personalidades da nossa comunidade ali vimos ainda há pouco tempo o Dr. Nuno Bello Mello, Cônsul Geral de Portugal em Montreal a assistir a uma sessão cultural sobre a Cultura Portuguesa promovida pelo Leitorado de Português em Montreal. - E até passou pelas brasas (não nas do carvão), garantem os que o viram e testemunham o sono que a cultura dá. Mesmo o prestigiado catedrático da Universidade de Montreal já por ali andou à procura de vestígios de Barroco. Encontrou um bacalhau assado servido com batata cozida, picante e salada de alface e tomate (Barroco, está-se mesmo a ver). Os proprietários lembraram o Dr. Eduardo Fernandes de Oliveira -. Esse era falar, falar e falar que, se não o puxassem, ele p'ra ali ficava. Estilos. E, garantem os que assistiram, já ali houve uma luta de Aikido entre Luís Aguilar e Maria Luisa Fernandes pela posse do direito a pagar a conta. Claro já se sabe quem ganhou a contenda: a Maria Luísa Fernandes. Idêntico corpo a corpo se jogou, entre a Dra. Alix de Carvalho e o mesmo Dr. Aguilar que, desta feita ganhou o combate, já no prolongamento e depois de várias horas de disputa.
E a questão que, finalmente, se coloca: Ma vie ou Belle vie? Pourquoi pas MAVI?