Fora da Cova da Iria, uma tasca que
vai passando do impessoal ao personalizante: uma forma de ser-se português,
uma tasca bem portuguesa, com certeza. Com toda a certeza come-se no
MAVI um bom frango assado e bebe-se um bom vinho português de
garrafão. Para ser da pipa só falta a dita porque o resto
é como se fosse -dizem os seus simpáticos proprietários
que levantaram uma velha taberna do chão. Onde antes se serviam
cachorros, "poutines" e quejandos se come hoje barato e à
fartazana. A testemunhá-lo a grande afluência de africanos
que em todas as línguas da colonização e mesmo
nas várias recriações dessas línguas, nos
vários crioulos que adoptaram a casa como sua sala de jantar.
E com a boca perto do coração a lembrar o que manjavam
na sua terra, vêm em bandos e com apetite de veludo, trincar ali
mesmo o galinácio ou, então, levá-lo para comerem
em casa. Os Africanos começaram por ser os primeiros clientes
da casa, vocacionada, inicialmente, para a deslocação
ao domicílio - as "livrezons", como dizem João
e Maria João - depois, gradualmente, porque o dinheiro não
chega para tudo, sobretudo quando se vende barato, compraram toalhas
para as mesas, verdes e encarnadas, louça de barro tipicamente
portuguesa e lanternas para as paredes que fazem lembrar as tascas do
Bairro Alto. Começaram a aparecer os primeiros portugueses e
estes foram fazendo algumas sugestões: - Porque não um
caldo verde? - Vinho português de garrafão que ao menos
esse tem uva!.
Nem sempre há o que a gente quer. Não faz mal. Traga a
sua carne que nós assamos poderia bem ser o título colocado
à entrada. E às vezes quando a caça o permite até
javali lá se pode encontrar. Já lá comemos também
cabrito assado (ali mesmo nas nossas barbas). Dá-se sempre um
jeito para safar a malta que quer comer coisas que não vêm
na ementa. Ementa? Não é preciso. Está tudo à
vista. - As pessoas não vêm cá para ler, vêm
para comer - diz o João, enquanto a Maria, rediz, a talhe de
foice: - Sim, que isto aqui não é nenhuma biblioteca.
Mas é ali que vemos, vezes sem conta, os professores de Português
e os estudantes da nossa magna língua, deliciarem-se com bons
nacos de especulação literária. Há mesmo
quem diga que boa parte do celebérrimo programa de Mineur se
conjecturou em tão inspirador cenário. Na parede frontal,
especado na parede um grande cartaz e um não menor pensamento
de José Saramago. - Devias era pôr ali o retrato do Eusébio
ou da Amália, sugerem alguns conformados e conformistas do tempo
da sagrada trilogia Fado-Futebol-Fátima. E se já havia
"effes" de sobra, alguém mais actualizado e erudito
responde com um vocábulo também começado com F
(e que por recato não reproduzimos) seguido de: - Ainda se fosse
o Figo e a Dulce Pontes ou mesmo a nossa Sãozinha. E logo um
indígena que está por perto se afoita na proposta: Põe
mas é aí aquela oferta de mil dólares que um maduro
qualquer oferece a quem denunciar quem lhe chamou paneleiro. - Já
vai em três mil pá, esclarece um outro. - Por três
mil dólares até podem dizer que fui eu, diz um terceiro,
conhecido pelo Pé Ligeiro (metafórico claro) e a Mão
na Oportunidade. Ou tão simplesmente, o Brasileiro. Cremos que
se estarão a referir àquela preciosidade literária
escrita em brutoguê,s que o Jornal do Emigrante publicou nas suas
páginas "chauffé au rouge".
E a tertúlia prolonga-se que a noite ainda é uma criança.
E criança se deita já que a tasca fecha por volta das
dez da noite. Que o Michael, de oito anos, tem de ir para a cama. P'ra
cama vão muitos os que dali saem depois de extensos jogos de
saudade & sedução.
Tertúlias outras se realizaram ali. O ex-Cônsul Geral de
Portugal, em Montreal, o Dr Eduardo Fernandes de Oliveira (sempre ali
relembrado com carinho e saudade: Esse sim, era homem para falar connosco!),
acompanhado do Dr. Luís Aguilar e da Dra. Maria Luisa Fernandes,
ali comeram todos um caldo verde e um bacalhau. O melhor bacalhau que
já comi, confessa a Dra. Apparecida de Almeida. Às Sextas-feiras
não faltava ao chamamento do Fiel Amigo. Outros tempos, sim,
que ela agora já aí não vai. Que o português
é muito lento a servir, minina (não perde uma para falar
mal de Portugal e dos portugueses). - Ela anda sempre num foguete- diz
o João. - Quando chega aqui já quer tudo pronto, mastigado
e tudo, e isso não pode ser, ataca a foice de talhe, desta vez,
a Maria João. No MAVI o ritmo é a três velocidades
(devagar, muito devagar, devagarinho), pois os grelhados levam o seu
tempo... São algarvios (não é metafórico,
é verdade mesmo!). - Sheila, (a sedutora angolana que trabalha
no Mavi e que põe os moços de olhos em bico) estamos às
escuras - diz o Dr. Luís Aguilar, quando ali vai acompanhado
dos seus estudantes de Língua Portuguesa e Culturas Lusófonas,
regularmente, às terças e quartas, para mais uma tertúlia.
E a Sheila dirige-se para o interruptor olhando estupefacta para a lâmpada
acesa. - Não é isso, lembra a Maria João. - O que
eles querem é um jarro de vinho. E virando-se para os que acabam
de chegar: Querem luz branca ou tintada?. Entre outras personalidades
da nossa comunidade ali vimos ainda há pouco tempo o Dr. Nuno
Bello Mello, Cônsul Geral de Portugal em Montreal a assistir a
uma sessão cultural sobre a Cultura Portuguesa promovida pelo
Leitorado de Português em Montreal. - E até passou pelas
brasas (não nas do carvão), garantem os que o viram e
testemunham o sono que a cultura dá. Mesmo o prestigiado catedrático
da Universidade de Montreal já por ali andou à procura
de vestígios de Barroco. Encontrou um bacalhau assado servido
com batata cozida, picante e salada de alface e tomate (Barroco, está-se
mesmo a ver). Os proprietários lembraram o Dr. Eduardo Fernandes
de Oliveira -. Esse era falar, falar e falar que, se não o puxassem,
ele p'ra ali ficava. Estilos. E, garantem os que assistiram, já
ali houve uma luta de Aikido entre Luís Aguilar e Maria Luisa
Fernandes pela posse do direito a pagar a conta. Claro já se
sabe quem ganhou a contenda: a Maria Luísa Fernandes. Idêntico
corpo a corpo se jogou, entre a Dra. Alix de Carvalho e o mesmo Dr.
Aguilar que, desta feita ganhou o combate, já no prolongamento
e depois de várias horas de disputa.
E a questão que, finalmente, se coloca: Ma vie ou Belle vie?
Pourquoi pas MAVI?